Famílias atípicas compartilham desafios e obstáculos em 5ª edição do Projeto Vozes
As famílias atípicas, com pessoas inseridas no Transtorno do Espectro Autista (TEA), foram o público ouvido na quinta edição do Projeto “Vozes: narrativas sociais e diálogos com o Sistema de Justiça”, na tarde desta segunda-feira, 23. O evento, realizado no auditório da Justiça Federal em Alagoas (JFAL), no bairro da Serraria, atraiu a atenção do público, tanto pela temática, quanto pela programação elaborada para esta etapa, com atração musical, tradução em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e áudio descrição.
Antes da realização do evento, os juízes federais Antônio José de Carvalho Araújo e Felini de Oliveira Wanderley conheceram a Associação de Pais e Amigos do Autista (Assista), a fim de conhecer a realidade vivenciada por esse segmento social. Os magistrados conversaram com mães e pai de pessoas autistas, que relataram os obstáculos e desafios enfrentados diariamente.
A roda de diálogo serviu como ferramenta de aproximação entre o sistema de Justiça e as famílias atípicas, configurando o principal objetivo do projeto, como destacou o coordenador do projeto, juiz federal Antônio José de Carvalho Araújo. “O papel de ouvir é fundamental para a realização dos direitos humanos e para a Justiça é essencial essa aproximação com as pessoas que estão inseridas em uma realidade de vulnerabilidade socioeconômica, tendo em vista que esses grupos precisam de maior proteção”, destacou o magistrado. A 5ª edição do Projeto Vozes faz parte da programação da 3ª Semana Regional de Acessibilidade e Inclusão da Justiça Federal da 5ª Região.
O juiz federal e diretor do Foro, Aloysio Cavalcanti Lima, também esteve presente no diálogo e agradeceu a presença de todas as autoridades. “A Justiça Federal está de braços abertos para debater sobre essas temáticas tão importantes”, considerou. O presidente da Comissão de Acessibilidade e Inclusão da JFAL, juiz federal Felini de Oliveira Wanderley, também participou da roda de conversa e afirmou que a principal proposta do encontro é dar a visibilidade necessária às famílias e que passam por diferentes tipos de dificuldades relacionadas à criação de um filho ou filha com TEA. “Hoje nós queremos trazer a voz das famílias que estão aqui, que conhecem essa realidade, que são as protagonistas nas pautas de hoje. Que elas possam mostrar ao público o que é o autismo, a realidade do transtorno e as dificuldades atreladas a ele”, disse. “Hoje, a cada 36 crianças que nascem, uma está dentro do Transtorno do Espectro Autista”, complementou o magistrado.
A mãe atípica
A visibilidade e o acesso a questões relacionadas ao autismo já estão muito evoluídas em relação ao que poderia ser observado anos atrás. No entanto, o avanço ainda não foi o suficiente para chegar em um ponto de satisfação para as famílias atípicas. A avaliação é da palestrante e mãe atípica Claudete Eduardo. “Hoje temos mais informação, mais acesso, mas as portas ainda não estão abertas para essas pessoas. Ainda não existem boas políticas definidas para as pessoas com autismo”, relatou.
Muitas mães atípicas acabam deixando a própria vida de lado para poder dar a atenção que os filhos necessitam, como foi o caso de Camila Soares, também palestrante e mãe atípica. “Sou formada em ciências biológicas pela Ufal. Era meu sonho, mas não pude priorizar minha profissão pois tinha que cuidar do desenvolvimento da minha filha. Muitas vezes eu me culpei, procurei motivos e respostas para entender o porquê disso estar acontecendo comigo. Não sabia nada sobre o autismo e me deparei com uma realidade chocante”, relatou a bióloga.
Luta por direitos
A garantia de direitos pelas famílias atípicas também não é um processo fácil. Muitas passam anos esperando a execução de uma única sentença. A defensora pública da 28ª Vara Cível da Infância e Juventude, Taiana Grave, participou da roda de diálogos e se emocionou ao falar sobre a dificuldade de determinados trâmites jurídicos. “A Defensoria Pública é a porta de entrada dessa população que não tem acesso. Ela dá acesso ao Judiciário. Mas será que dá acesso à Justiça de fato? Essas pessoas precisam de políticas públicas eficazes para terem os seus direitos garantidos”, questionou.
A advogada e mãe atípica Nielle Barros obteve uma experiência de dualidade, como mãe de uma criança autista e atuante no Direito previdenciário. “Em 17 anos de advocacia previdenciária, nós nos especializamos para acompanhar as alterações e sermos porta-vozes de todas essas famílias, mas nada prepara mais do que a vivência”, contou a advogada.
Os processos judiciários que as famílias enfrentam são de responsabilidade de diferentes tipos de autoridades e acabam gerando um desgaste para os solicitantes de seus direitos. O promotor de justiça da 28ª Vara da Infância e Juventude, Gustavo Arns, falou um pouco sobre o decorrer das sentenças. “A briga perpassa por orçamento público. Algum tempo atrás não se ouvia falar de autismo nos Juizados Especiais e assim que assumi a Vara da Infância não tinha noção da gravidade da situação. Diante da omissão do município e do estado, a iniciativa privada acaba dominando esse cenário. O Ministério Público está à disposição para eventuais demandas”, garantiu o promotor.
Novas políticas públicas
A sobrecarga das mães a partir do momento que uma criança é diagnosticada com TEA é algo que também deveria ser mais discutido em sociedade, como afirmou a juíza federal e presidente da Comissão de Acessibilidade e Inclusão da Justiça Federal no Rio Grande do Norte (JFRN), Lianne Pereira. “A visão da sociedade é muito injusta com as mães. Será que é justa toda essa carga sobre elas? Por que não escutamos tantos relatos de pais que precisaram largar o emprego para cuidar dos filhos?”, questionou a magistrada. A juíza auxiliar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e presidente da Comissão de Acessibilidade e Inclusão do órgão, Kátia Roncada, destacou alguns equívocos que acontecem hoje na definição de pessoas aptas a receber algum benefício. “Hoje acontece a exclusão da deficiência leve. Para garantir benefícios, apenas a deficiência considerada moderada ou grave são levadas em consideração. Não há uniformidade para olhar e dizer quem é a pessoa com deficiência. É urgente cuidar disso”, exclamou.
Ao final do evento, o juiz federal Antônio José de Carvalho Araújo abriu espaço para a plateia realizar o registro de alguma dúvida ou comentário. Ange Muniz, 24, contou um pouco do que vivenciou. “Eu fui diagnosticado com autismo consideravelmente tarde, aos 21 anos de idade; meu suporte é nível 1. No entanto, por muitas vezes, o fato de eu ser autista não era considerado em momento algum, inclusive por médicos, por não ser um grau alto”, contou.
Além de magistrados e de famílias atípicas, também acompanharam a quinta etapa do Projeto Vozes, servidores, público externo e patrocinadores da Semana de Acessibilidade e Inclusão.